Wednesday, October 13, 2004

:: Fernando Sabino ::

"SEMPRE que começo a escrever, desde menino até hoje, me sinto um principiante. Vou escrever alguma coisa que não sei o que seja, justamente para ficar sabendo. E que só eu posso me dizer, mais ninguém.

Por isso ąs vezes passo horas, dias ą procura de uma palavra ou do fecho de uma frase. Não quero repetir as coisas já ditas, inclusive por mim, o que infelizmente às vezes acontece. Para isso tenho que desaprender o que aprendi, me livrar dos preconceitos, das idéias que me foram impostas, de tudo enfim que possa tolher a minha liberdade de expressão.

Tento a cada dia recuperar esse estado de pureza. Renascer a cada manhã. Não digo que consiga sempre, mas tento. Como se eu tivesse acabado de desembarcar neste mundo.

No mundo da literatura, desembarquei desde que me entendo por gente. Ainda menino, descobri que tinha vocação para mentiroso. Contando para os amigos alguma história que havia lido, comeēava a inventar, alterando o final, acrescentando personagens e episódios, modificando o enredo. Em suma, ajudando o autor.

Desde criança eu já achava que a verdade está muito além da realidade. Para mim, nossos sentidos eram fracos e deficientes, de pouco alcance: a vista devia enxergar mil quilōmetros e ver através das paredes, o ouvido devia ouvir além da barreira do som.

Um dia perguntaram a Lúcio Cardoso por que ele escrevia.
- Porque não tenho olhos verdes. - respondeu o romancista mineiro.
Não é propriamente o meu caso, evidentemente ( se bem que eu também não tenha). Escrevo porque me sinto descompensado em relação ą realidade que me cerca. Preciso de uma verdade fora de mim em que me agarrar, para ser do meu tamanho - nem maior, nem menor.

A minha realidade interior vive abaixo do nível que me cerca. Para restabelecer o equilíbrio, num contato normal com os demais seres humanos, tenho que escrever. Como "O Tabuleiro de Damas" de meu livro com este título, que nćo é nem branco com quadrados pretos e nem pretos com quadrados brancos e sim de outra cor, com quadrados pretos e brancos; assim também, a recriação da realidade pela imaginação, através da linguagem escrita, é a maneira que tenho de me comunicar.

Vivo para escrever, escrevo para sobreviver."

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